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03 de Maio de 2024, 07:05
Atualização 29.04.2022 às 12:40
Publicação 28.04.2022 às 14:48
Leitura que liberta: como o hábito de ler impacta a vida das pessoas privadas de liberdade no RS
Na Cadeia Pública de Porto Alegre (CPPA), cerca de 50 apenados participam do projeto Remição pela Leitura promovido pela unidade

“A leitura me traz conhecimento, e é por isso que eu leio, para me manter focado, com a mente sã, e aprender mais sobre a vida”, conta Marcos, de 37 anos, apenado da Cadeia Pública de Porto Alegre (CPPA), o antigo Presídio Central. Na prisão, mais do que em qualquer outro lugar, a leitura é uma das poucas maneiras de acessar o mundo exterior, de compreender os acontecimentos atuais e históricos, e de adquirir conhecimento.


O incentivo ao hábito de ler tem sido considerado pelo poder público como um dos meios alternativos para a ressocialização dessas pessoas. Nos últimos anos, diversos encaminhamentos legais foram discutidos e implementados a fim de consolidar uma política nacional que garanta o direito à educação, previsto na Lei de Execução Penal (LEP)


Em 2010, foi publicada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) a Resolução nº 2, que regulamentou as diretrizes nacionais para a oferta da educação voltada a jovens e adultos privados de liberdade. Nesse documento, além da elevação de escolaridade, a leitura é tida como fundamental no processo educativo nas unidades prisionais. Em 2013, a Recomendação nº 44, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ampliou o significado da leitura nos estabelecimentos prisionais. Além de ser um instrumento que possibilita a liberdade para a mente dessa parcela da população que vive intramuros, a leitura passou a ser uma forma de reduzir o tempo da pena.


De acordo com dados de março de 2022 da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), órgão responsável pela gestão do sistema prisional gaúcho, das cerca de 43 mil pessoas em privação de liberdade no estado, 58% não concluíram o ensino fundamental, 13,36% possuem o ensino médio incompleto, 1,74% são analfabetos e aproximadamente 1,8% ingressou ou tem diploma do ensino superior. Majoritariamente composta por jovens entre 18 e 29 anos (38%), mais de 94% da população carcerária é do sexo masculino. 


Ao considerar as especificidades que permeiam o ambiente e a população prisional, a tarefa de desenvolver o hábito de ler no cotidiano das pessoas privadas de liberdade é repleta de desafios. No entanto, em todos os meios que está inserida, a leitura é capaz de promover transformações na vida de quem a coloca em prática. 


“Eu já vi tanta gente na rua presa, e tanta gente aqui dentro solta”


Há mais de um ano na CPPA, Marcos relata que não se considerava um leitor assíduo, já que lia apenas a Bíblia no período em que estava em liberdade. Quando surgiu a possibilidade de ter contato com livros, por meio do programa Remição pela Leitura, ele considerou que seria uma boa oportunidade para ampliar os conhecimentos.


"O livro é um complemento que me faz entender mais sobre o português, que eu nunca fui muito bom. Tenho o ensino médio completo e considerei, na época, que isso já bastava pra mim. Hoje, lendo livros, eu tenho esperança de sair daqui e de tentar fazer uma faculdade. Eu acho que isso me abriu os olhos e, de certa forma, me deu oportunidade de ter um outro tipo de pensamento”, comenta. 


Marcos também diz que, com a leitura, se tornou viável aprender conceitos que ele não conhecia. “Eu aprendi nos livros o que é conservador, liberal, política. E de política eu nunca entendi nada. Pelos livros, eu comecei a compreender um pouco mais.”


Além dos aspectos mais práticos do conhecimento, ler se tornou um meio de encontrar amparo em um ambiente onde uma série de restrições são impostas aos indivíduos. “É o meu refúgio quando eu tô na galeria”, afirma Marcos. Assim como ele, Antônio, de 22 anos, também pensa que a leitura tem um papel importante dentro da cadeia.

 

O espaço de leitura da Cadeia Pública conta com mais de sete mil títulos | Foto: Camila Borges/Ascom Susepe


“Eu sentia muita falta da leitura e da escrita. Eu já estava há mais de dois anos sem ler e escrever. Quando eu comecei a ler os livros, melhorou muito a minha vida, até no modo de conversar com as pessoas”, diz Antônio. Com preferência por narrativas de romance e de terror, ele relata que, às vezes, fica imerso nos livros, imaginando o que está acontecendo só pela descrição das palavras, como se uma história se montasse na cabeça dele e formasse um quadro com desenhos e imagens.


Acompanhado da paixão pela leitura, Antônio exerce o hábito de escrever. “Eu tenho um caderno que eu trouxe e, muitas vezes, ganho canetas e começo a escrever e a desenhar para desenvolver mais a minha imaginação a partir dos livros que eu leio. Eu sou compositor, escrevo todos os dias aqui dentro. E, quanto mais eu leio, mais eu escrevo, porque aprendo novas palavras”, destaca.


Dentre os benefícios proporcionados pela prática da leitura no ambiente prisional, está o resgate da autoestima dos apenados. A oportunidade de estar em contato com práticas educacionais possibilita novas perspectivas a essa parcela da população. “Foi um incentivo pra eu voltar a escrever, a ler, a interpretar. Eu achei que nem tinha mais capacidade de fazer isso”, avalia Antônio.


A liberdade para mente é algo recorrente quando ler se torna uma atividade cotidiana. Para o apenado Fernando, de 31 anos, também em cumprimento de pena na Cadeia Pública, os livros proporcionam uma mudança no ambiente em que está inserido. “A gente sai um pouco daqui de dentro, que é o dia todo com turbulência, através da leitura.”

 

 

 

 

As salas de leitura possuem um papel importante no sistema prisional

“Eu já vi tanta gente na rua presa, e tanta gente aqui dentro solta. Tem gente na rua que é mais presa que nós aqui dentro, em termos de privação da mente. Pela leitura, a gente consegue ir além do que outras pessoas têm ido, talvez por causa dessa prisão que elas têm na mente delas. O livro faz com que a gente tenha uma nova visão dos caminhos”, declara Fernando.


A psicóloga Fabíola Vargas, que é uma das responsáveis pela coordenação do projeto que possibilita a remição de pena pela leitura na Cadeia Pública, destaca os desafios enfrentados para manter o hábito e a importância que ler tem para as pessoas privadas de liberdade, porque é uma maneira de eles se transportarem para fora do presídio. “A gente sabe, por meio de relatos, que é muito difícil ler lá dentro por causa da quantidade de pessoas e do barulho. Então, eles realmente fazem muito esforço. Quem lê um livro, quem faz um resumo bom ou médio, é quem realmente se esforçou, porque é um local muito difícil para fazer isso”, afirma Fabíola. Atualmente, cerca de 50 apenados participam do projeto Remição pela Leitura na CPPA.


Diminuição da pena por meio da leitura


Com a publicação da Portaria 033/2019 da Susepe, que permaneceu em vigor até 2021, foi regulamentado o projeto Remição pela Leitura no RS, com a padronização e a sistematização das ações que envolvem o desenvolvimento da atividade, considerando a recomendação do CNJ, publicada em 2013. A partir da aprovação da Resolução nº 391, também do CNJ, em maio de 2021, foram estabelecidos novos procedimentos e diretrizes a serem observados pelo Poder Judiciário para o reconhecimento do direito à remição de pena por meio de práticas sociais educativas em unidades de privação de liberdade.


Através desse documento, a remição por meio de atividades de educação não-formal, como leitura, esporte e cultura, deixou de ser uma recomendação e passou a ser um marco legal que deve ser seguido por todos os estados da federação. Essa regulamentação trouxe avanços importantes na garantia do direito à educação com fins de remição da pena, que já era uma demanda de organizações e movimentos de defesa dos direitos humanos.


A normativa determina a promoção de projetos de fomento e qualificação da leitura pelas unidades prisionais com ampla divulgação para as pessoas presas. Além disso, dá liberdade para que os apenados escolham as obras que serão lidas, evitando a censura. As equipes dos projetos também podem definir os critérios de escolha das pessoas presas participantes.


Os detentos podem permanecer com os livros durante um período de no máximo 30 dias e devem fazer um relatório da obra após a conclusão da leitura, que é avaliado pela Comissão de Validação de cada unidade. Cada obra lida, depois do reconhecimento da Justiça, representa a redução de quatro dias da pena, considerando o limite de 12 livros lidos por ano e, portanto, 48 dias remidos como teto anual dessa modalidade de remição.


A integrante da equipe de Divisão de Educação Prisional do Departamento de Tratamento Penal da Susepe, Maura Moisinho, destaca que o hábito da leitura no ambiente prisional é resultado de um processo de estímulos constantes. “Investir em ações que promovam a leitura faz com que tenhamos cidadãos mais conscientes e livres. Estamos plantando sementes na mente e no coração das pessoas privadas de liberdade e acreditamos na colheita de bons frutos no processo de inclusão social”, diz Maura.


No final do ano passado, a Susepe publicou a Ordem de Serviço n° 01/2021, que regulamentou novamente o direito à remição de pena por meio da leitura, baseada na resolução mais recente do CNJ. Das 112 unidades prisionais gaúchas, 105 contam com espaços de leitura, criados e equipados através de uma parceria do sistema prisional com o Banco de Livros. Hoje, 22 estabelecimentos desenvolvem o Remição pela Leitura. De acordo com dados de dezembro de 2021, disponibilizados pelo Departamento de Tratamento Penal da Susepe, 459 pessoas em privação de liberdade participam desta atividade no Estado.


O superintendente dos Serviços Penitenciários, José Giovani de Souza, considera que o acesso à leitura é um direito que deve ser garantido nas unidades prisionais. “A leitura possui um papel importante no processo de ressocialização, pois, com a educação, é possível devolver os apenados à sociedade com mais valores e aprendizados. E é nossa função, enquanto gestores da administração e da execução da pena, dar oportunidade para que aqueles que estão privados de liberdade possam ter acesso a esse tipo de atividade”, ressalta Giovani.


Produções literárias dentro das unidades prisionais


Quando ingressou no sistema prisional em 1987, aos 24 anos, Damião Silva dos Santos começou a colocar no papel tudo o que sentia. Os manuscritos de mais de 30 anos de histórias e vivências no cárcere foram guardados e transformados em obras literárias. Atualmente com 58 anos, Damião já publicou três livros — Odisseia no Hospício (2017), Predestinado a sobreviver (2020) e Damião Santos, o poeta (2022) — e pretende lançar em breve o quarto título, que será uma obra de ficção.


Cumprindo pena em regime semiaberto desde 2022, Damião já passou por algumas unidades prisionais do Estado e permaneceu por boa parte do tempo na Penitenciária Estadual de Santa Maria. “A escrita foi tudo para mim enquanto estive privado de liberdade. Sem ela, eu acho que não teria como sobreviver, não por conta da questão física, mas por causa da questão mental. A leitura e a escrita são formas de desabafo. A gente coloca ali todas as mágoas, as frustrações. Toda a raiva que eu tinha, aquela vontade de reagir, eu passei para o papel e transformei nessas obras”, relata.

 

Aos 58 anos, Damião já publicou três livros e pretende lançar o quarto título em breve


Ele conta que teve o apoio dos servidores dos estabelecimentos prisionais para manter o hábito da escrita e da leitura. Damião considera que, sem a escola, os professores e os livros na prisão, ele não teria conseguido produzir nada. No tempo em que esteve preso, foram essas atividades que o fizeram mudar de perspectiva. “Se não fosse a leitura e a escrita, eu estaria com a mente fechada. Eu não saberia falar, não saberia escolher os caminhos certos, porque ela expande a nossa capacidade de raciocínio, e isso é uma forma de liberdade”, diz Damião.


Ele ressalta a importância da leitura no contexto prisional como uma forma de tomada de consciência por parte dos apenados sobre o lugar que ocupam na sociedade. “A maioria dos presos não entende que se eles não lerem, eles não vão ter força de comunicação, não vão ter conhecimento de causa. No momento em que eles tomarem posse dessa vontade de aprender, eles vão ter uma maior condição de sobrevivência, não só lá dentro como aqui fora.”


Exemplos como o de Damião são mais raros, mas demonstram como a leitura pode impactar e transformar a vida de uma pessoa privada de liberdade. Como um meio de estimular a produção textual entre os apenados, a parceria da Susepe com o Banco de Livros também tem possibilitado a publicação do livro Vozes de um Tempo, que terá o seu quinto volume publicado neste ano. Nele, são compilados textos autorais de detentos de diversas unidades do sistema prisional gaúcho. A iniciativa visa atender diretrizes básicas do tratamento penal, como a inclusão social e a construção de espaços de cidadania


O hábito de ler como uma prática ressocializadora


Considerar o acesso à literatura como uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e que constitui um direito humano, era algo defendido pelo sociólogo e crítico literário Antonio Candido. No ensaio O Direito à Literatura, de 1988, ele compreende a literatura como um instrumento poderoso de instrução e educação, sendo proposta a cada um como um equipamento intelectual e afetivo.


Além disso, ele pontua que a literatura desenvolve nas pessoas uma parcela de humanidade, na medida em que é capaz de torná-las mais compreensivas e abertas para a natureza, a sociedade, o semelhante. A humanização é entendida como o processo que confirma no indivíduo aqueles traços considerados essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções e a capacidade de penetrar nos problemas da vida.


E no contexto prisional não é diferente, a literatura se torna ainda mais necessária. A educação, por meio da leitura, viabiliza o desenvolvimento de habilidades e potencialidades que as pessoas privadas de liberdade muitas vezes nem imaginam ter. Nesses casos, a prática da leitura também pode servir como um instrumento de ressocialização dos apenados, ao fornecer um percurso alternativo como experiência para a reintegração na sociedade através dos estudos e para redescobrir o sentido do coletivo que se perde dentro da prisão.


O secretário de Justiça e Sistemas Penal e Socioeducativo, Mauro Hauschild, ressalta a importância do papel da leitura na educação prisional, que, assim como a saúde e o trabalho, é um dos pilares do tratamento penal. “As práticas educativas possibilitam que os apenados tenham mais dignidade e oportunidades de inclusão social. Temos como foco a promoção de um sistema prisional com o duplo sentido que precisa ter: o de privação de liberdade e o de ressocialização. É importante que tenhamos consciência de que todos os apenados voltarão ao convívio social, e é de interesse da sociedade que eles voltem melhores”, diz Hauschild.


Durante o período de reclusão, o resgate de aspectos que promovam a humanização se torna imprescindível para que o retorno ao convívio social seja de fato viabilizado. A leitura cumpre um papel significativo no ambiente prisional, transportando os apenados para um outro universo que possibilita a liberdade não só para a mente, mas também no sentido literal, com a diminuição da pena. Em todos os sentidos, ler é libertador.


Os nomes utilizados nesta matéria são fictícios para preservar a identidade das pessoas privadas de liberdade.

 

 



 

 

 

Os detentos podem permanecer com os livros durante um período de no máximo 30 dias e devem fazer um relatório da obra após a conclusão da leitura, que é avaliado pela Comissão de Validação de cada unidade. Cada obra lida, depois do reconhecimento da Justiça, representa a redução de quatro dias da pena, considerando o limite de 12 livros lidos por ano e, portanto, 48 dias remidos como teto anual dessa modalidade de remição.



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